#GamingIsAWorldChanger | A Queda dos AAA

Tenho andado a dizer, já há algum tempo, que acho muito interessante a fase que estamos a viver nos videojogos. Nomeadamente, a aparente ruptura de relações na indústria dos devs que parecem estar saturados de fazer jogos AAA.

É verdade que Jorge Vieira, responsável pelo marketing da Nintendo em Portugal, desafiou a malta a pensar um pouco sobre a possível falta de criatividade nos videojogos, a constante procura em imitar o próximo – há quem diga, aliás, que a imitação é uma forma de elogio! – e o que o comum ser humano mortal pensará disto.

Para mim, tudo sempre foi um reflexo da sociedade. O assédio ocorre no trabalho. O racismo continua a existir. Os homens continuam a querer mandar nos corpos das mulheres. As pessoas entram num buraco mental porque ninguém as vai aceitar como elas são. A indústria dos videojogos não escapa. E como tudo isto, a crise dos jogos AAA está a cimentar cada vez mais.

Parece-me não só que a comunidade gamer começa a ficar saturada de jogos AAA, como tudo isto não deixa de ser um espelho duma convivência humana saturada de tudo, saturada do habitual, e com uma vontade enorme de quebrar velhos hábitos. Estamos todos cansados e bastante perdidos. Não sabemos bem como ser felizes.

AAA VS INDIES

“American Arcadia” © Out of the Blue Games

Não é por acaso que há várias pessoas que adoram conhecer os novos indies. São livres de qualquer pressão corporativa em conseguir aquele caché ao final do ano fiscal. Há tantos, tantos, tantos projectos com um aspecto delicioso a caminho! “American Arcadia”, “The Callisto Protocol”, “Ikonei Island: An Earthlock Adventure”, “High On Life”, “Planet of Lana”, “XEL”, “Oddada”, “The Plucky Squire”, a lista não acaba.


Lá vamos nós de novo, o habitual osso duro de roer. Parece que a comunidade evoluiu um pouco, mas ainda existe muito o estigma de que o termo “indie” iguala mau, fraca qualidade, jogos para crianças, jogos pequenos, gráficos não realistas, e tantos mais preconceitos. Não vou estar de novo a explicar o termo, mas o curioso nos dias que correm é a quantidade de novos estúdios e empresas indies que estão a ser criadas da parte de trabalhadores que viveram a maioria do seu tempo expediente a trabalhar para grandes empresas.

Diria que, de forma impressionante, isto tem passado debaixo do radar de muitos. Não me refiro ao reconhecimento geral do que se está a passar, mas à falta de debate sobre as suas causas e motivos. Não é apenas um ou outro caso. A cada dia que passa vemos mais estúdios indies a serem formados por veteranos de grandes empresas, e quase todos sob o mesmo lema: uma ideia de liberdade criativa aliada à experiência e qualidade técnica adquirida no ramo AAA.

Tal foi até abordado por quem é talvez uma das pessoas da indústria com maior influência no Twitter. O nome Nate Najda não deverá soar nada familiar, já que o Gestor de Marca da Untold Tales se identifica por “Shinobi602” e utiliza uma imagem de Wayne Knight (Newman) como foto de perfil. Mas Nate criou um thread interessante na plataforma com uma lista de vários estúdios indies criados nos últimos anos. Estes são apenas os primeiros:

  • 31st Union (2019) – estúdio financiado pela 2K, fundado por Michael Condrey da Sledgehammer Games, conta com experiência vinda da Blizzard, EA e Rockstar.
  • Archetype Entertainment (2019) – com James Ohlen, Líder de Design de “Baldur’s Gate”, “KOTOR”, “Dragon Age: Origins”) ao leme, e mais da BioWare e Naughty Dog, estão a criar um novo AAA RPG de ficção científica.
  • Striking Distance Studios (2019) – liderado pelo criador de “Dead Space”, Glen Schofield, e a trabalhar em “The Callisto Protocol”, que chega este ano.
  • Deviation Games (2020) – composto por pessoas que trabalharam na Treyarch e DICE.
  • Gravity Well (2020) – conta com veteranos de “Titanfall 2”, “GTA V”, “Red Dead Redemption 2”, “Call of Duty 4” e terá o seu primeiro projecto publicado por terceiros.
  • Haven Studios (2021) – o mais recente estúdio da família da Sony é feito por indivíduos que trabalharam em estúdios da Ubisoft, liderados por uma das responsáveis em trazer ao mundo os franchises de “Assassin’s Creed” e “Watch Dogs”, Jade Raymond. O antigo Director de Narrativa de “Assassin’s Creed”, Corey May, também faz parte.
  • That’s No Moon (2021) – formado por talentos da PlayStation, Infinity Ward, Naughty Dog, Sony Santa Monica e mais, um investimento de 100 milhões de dólares da Smilegate.

Sugiro que vejam mesmo a lista feita por Nate, e até nesta pequena amostra que vos dei se vê um padrão. Nos últimos anos, alguns dos maiores nomes da indústria parecem começar a abandonar as grandes empresas para se focarem em criar os mundos que sempre quiseram, para contar as suas próprias histórias.

A CRISE DOS AAA

Call of Duty: Modern Warfare II
“Call of Duty: Modern Warfare II” © Infinity Ward

O eterno “Call of Duty” voltará mais um ano, com “Modern Warfare II” em 2022. COD sempre teve lançamentos anuais desde “Call of Duty 2”, em 2005. Não há uma pausa anual entre dois jogos dum dos franchises mais aclamados da história há 17 anos.
“Call of Duty” chegou ao mundo em 2003. Há 19 anos.


Este mistério na verdade não é um mistério. Nos relatórios anuais fiscais, o grande foco acaba por ser sempre as receitas. Quanto é que a empresa ganhou, no quê, qual o crescimento financeiro, que tipo de projectos poderão trazer mais, que investimentos é que valem a pena? Claro, todos querem e precisam de fazer dinheiro, mas esta indústria cresceu exponencialmente nas últimas duas décadas a uma escala sem precedentes, valendo mais que a indústria do cinema e da música juntos. Talvez tenhamos todos perdido um pouco a alma dos videojogos quando terceiros perceberam o dinheiro que podiam fazer para satisfazer o seu bel-prazer. Os criadores precisavam de investimento de capital, e os ricos precisavam de algo novo onde fazer mais dinheiro.

Mesmo em casos fatídicos como “Cyberpunk 2077“, onde os devs são ameaçados de morte, quem toma as decisões e estabelece os prazos, por norma, são os executivos, que de nada percebem da concepção de videojogos (nem querem saber), e apenas querem o retorno de forma constante. E como se consegue? Com lançamentos anuais ou bienais, por exemplo, como é o caso de “FIFA” ou “Call of Duty”, com as microtransações de que todos se queixam mas continuam a pagar, com as fórmulas recicladas de jogos como “Far Cry”, ou ports, remakes e remasters constantes da Nintendo – que não baixa o preço de “The Legend of Zelda: Breath of the Wild” desde o seu lançamento em 2017.

Mas na Arte, nada é constante. Tem havido cada vez mais pressão do lado corporativo e financeiro das empresas, face a criadores de todas as áreas que enfrentam assédio, racismo, homofobia, crunch e uma comunidade de jogadores cada vez mais exigente. Mas no meio disso tudo, provavelmente os trabalhadores começam a perceber que nem todo o dinheiro do mundo (e certamente que não recebem tanto quanto os seus chefes) serve para aguentar tanto abuso e ainda abdicar daquilo que os faz vibrar. Ninguém os permite dar asas à sua imaginação e criatividade.

Quer-me parecer que, mais do que nunca, e com toda tendência, indie já não é tanto um termo para independência financeira, mas antes para independência criativa. O dinheiro não move todas as pessoas, é preciso um motivo maior que elas mesmas para continuar.

PRECISAMOS DE MUDANÇA

-CAPA- Halo Infinite KEY Art
“Halo Infinite” © 343 Industries

Estou profundamente cansada de tanta conversa em volta de “Halo Infinite”. Não é nenhum jogo perfeito, mas a 343 Industries passa a vida a levar com ódio nas redes sociais porque, pura e simplesmente, não consegue agradar a todos.
Dever ser cansativo criar algo para um público tão grande, presos ao AAA sem espaço para criatividade.


A falta de criatividade referida aqui pelo Jorge, e a constante procura por fórmulas “comercialmente seguras”, de facto é bem vocalizada. No entanto, não considero que a cultura tenha estagnado. Nos videojogos, pelo menos, há lugares inesperados onde podemos encontrar isto. Por isto falo tanto em indies e me orgulho de trabalharmos com a ID@Xbox.

Nos primórdios dos Dummies, antes da nossa ausência, tive a oportunidade de experimentar jogos que nunca me passariam pela vista. Comecei a ver o valor dos indies e a cansar-me dos AAA. Há diferenças fulcrais entre estes dois tipos de investimento. Um atrai o público geral, sim, em detrimento da criatividade. O outro não tem nada a perder, nem público a satisfazer e pode arriscar mais.

E cada vez mais, diria até com a pandemia, se viu o quão podre são as grandes corporações. Nem com pessoas a morrer com um problema à escala mundial os executivos – ou os consumidores! – foram capazes de dizer “Não, nós preocupamo-nos com os devs.” Foram anos difíceis de trabalho online ou híbrido, que demonstraram a capacidade humana de se adaptar às adversidades, e inclusive trouxe uma pressão na sociedade muito difícil, separando as águas para revelar os que pensam como um grupo e os que pensam individualmente. Por isto, muitas foram as mortes provocadas pela falta de cuidados de terceiros e, como todos os outros humanos, os devs sofreram com perda e dor de forma extraordinária, enquanto lidaram com o ódio gratuito das redes sociais.

Como resultado directo do confinamento, centenas, senão milhares, de jogos foram adiados, simplesmente porque com as constantes pausas e o teletrabalho, tornou-se irrealista conseguir o mesmo ritmo de produção. Isto custou a quem ansiava jogar “Cyberpunk 2077“, “Dying Light 2”, “Rainbow Six Quarantine”, “Hogwarts Legacy”, “Gran Turismo 7”, “LEGO Star Wars: The Skywalker Saga”, “God of War Ragnarök”, “Horizon Forbidden West”, e “Halo Infinite”.

A 343 Industries, responsável pelo Halo, tem sido alvo de críticas constantes, ou melhor dizendo, toxicidade, desde antes de “Infinite” ter visto a luz do dia. Foi justamente criticada quando demonstrou a demo em 2020. Mas depois começou-se a ver cada vez mais opiniões tóxicas que se contradiziam dentro da comunidade. Levam por tabela porque adiaram o jogo, levam porque já o lançaram, levam porque não se chamam Bungie, levam porque se focam noutros personagens, levam porque só pensam no Chief, levam porque arriscam e porque não arriscam. É um exemplo clássico do tipo de pressão que as empresas responsáveis por AAA têm, sem conseguir agradar a gregos e troianos. É sempre uma batalha perdida, pois têm um público existente para satisfazer, que procura uma fórmula familiar. Do ponto de vista das empresas, está uma preocupação em justificar grandes investimentos com o que é comercialmente seguro, como o Jorge disse tão bem.

O QUE PROCURAMOS ESTÁ NOS INDIES

Ikonei Island: An Earthlock Adventure
“Ikonei Island: An Earthlock Adventure” © Snowcastle Games

“Ikonei Island: An Earthlock Adventure” foi um dos indies que tive a oportunidade de experimentar recentemente, e que me deixou vontade de jogar sem parar. Actualmente ando viciada em “Souldiers”, e lembro-me de ter ficado completamente agarrada a “Spiritfarer”, “Wild At Heart” e “Timespinner”.
Alguns dos jogos mais originais que joguei nestes últimos anos incluem “Beyond Blue”, “Etherborn” e “Cyber Protocol”. A minha lista de GOTY está cheia de indies!


Ao contrário do que alguns sugerem, não diria que foram AAA que revolucionaram a indústria nestes anos. Uma coisa que me irrita profundamente, é quando dão o exemplo do “The Last of Us”. Simplesmente porque continua a ser um IP mencionado para demonstrar inovação, quando praticamente todas as mecânicas ou técnicas já tinham sido utilizadas. Sem querer desmerecer nada do jogo nem da história que naturalmente marcou uma geração (até porque não gosto de opinar sobre aquilo que não sei), não sou apologista de adulterar informação ou factos. E o facto é que muitas das coisas que tantos apreciam em “The Last of Us” não foram ideias originais da Naughty Dog. Mas, na verdade, isto só demonstra o profundo desconhecimento geral que existe na comunidade gamer. Ah, e antes que me esqueça, a ignorância não é um insulto. Somos todos ignorantes em muita coisa!

E como a diferença entre os AAA e indies está na motivação principal, os jogos sem pressões externas são mais puros, nus e crus. Quando não há nada a perder (dinheiro, contractos ou comunidades), torna-se mais fácil arriscar.

“Minecraft” lançou há mais de 10 anos e continua a ser o jogo mais vendido. A febre dos battle royales foi introduzida ao mundo em jogos como “H1Z1”, “PUBG” e “Fortnite”. Na revelação de “Starfield”, as pessoas comentaram as parecenças com “No Man’s Sky”. Artistas foram inspirados pelo desenho e técnicas à mão em “Cuphead”. Não são os blockbusters da Xbox ou PlayStation que fazem a indústria avançar. É a originalidade, muito mais fácil de encontrar nos projectos mais pequenos. Mas nem a mimética é algo mau. Os jogos inspiram-se uns aos outros, e isso é normal. É a forma de se elevarem uns aos outros., de se complementarem. E eis uma grande revelação para alguns: nada é verdadeiramente original. Tudo o que criamos é uma referência. São interpretações do mundo que observamos. Não existe uma técnica mais válida entre desenhar de memória ou de observação. São ambas válidas.

Quanto ao futuro? E se os indies crescem como os AAA e começarem a perder a sua alma? Nada disto é fácil de equilibrar, mas continuo a dizer que tem de haver uma mudança de mentalidade da parte dos jogadores. Tenho pena que não haja uma mente tão aberta para aceitar as pequenas ou grandes mudanças, e é absolutamente vergonhoso que se passe da crítica para o comportamento tóxico e ameaçador só porque o jogo que queremos ainda não saiu. Sinceramente, não é possível estas pessoas terem problemas sérios!

O RETRATO DA SOCIEDADE

Starfield
“Starfield” © Bethesda Game Studios

Se acompanharem outros projectos meus, nomeadamente a minha escrita criativa fora do mundo gaming, poderão notar a minha tendência em reflectir sobre a humanidade. Afinal, é essa uma das sinas da Arte, em todas as suas formas. Inclusive os videojogos. Acham que gosto de Halo porquê?


Por isto, para mim tudo não passa dum reflexo da humanidade. Tudo o que fazemos a nível laboral é fruto da nossa individualidade e carácter. Quanto às queixas e ambiente tóxico? Na verdade estamos insaciáveis. Queremos algo novo mas familiar. Procuramos muito a nostalgia, talvez porque pensamos que isso nos leva a tempos mais simples, e por isso acho que tanto se faz e se vende ports, remakes e remasters. A maioria são cópias andantes sem alma que foram feitas pelas empresas para conseguir dinheiro fácil sem trabalhar muito, e desejada pelos consumidores que acham que se satisfazem jogando as mesmas coisas que jogaram no passado quando acham que eram mais felizes. Como humanos, faz parte da nossa natureza ser insaciável e procurar sempre ir mais longe, mas também não custa apreciar o que já se conquistou. Nos jogos é igual. Temos todos que aprender a valorizar mais o presente, porque há muita coisa fantástica por aí.

Se isto tem mais ramificações por trás? Claro. A humanidade está deprimida. Maioria está com ansiedade, depressão, burnout, e todos lidamos com isso de forma diferente. Estamos fartos de sermos apenas corpo para trabalhar onde ficamos na mesma e enriquecemos os ricos, de não ter propósitos na vida e de sermos explorados de todas as formas e feitios. Sem conseguir dar asas à imaginação.

Tudo se reflecte nos jogos e vice versa. Somos o reflexos uns dos outros. Termos como “originalidade” são bem discutíveis, mas como alma de artista desde que conseguia pegar num lápis, ai de mim ou de qualquer pessoa perder a sua criatividade. Isso é inato e deve ser celebrado. Por mais criatividade nos videojogos. Por favor! E por isso diria mesmo que estamos a assistir a uma queda dos AAA como os conhecemos.

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